quinta-feira, 28 de abril de 2011

Meu encontro com Machado de Assis e outros gênios

 Reencontrando D. Casmurro


Naquela noite, cheguei um pouco atrasada à aula, que começaria pontualmente às 19h. O trânsito e a chuva são inimigos da pontualidade nesta cidade. Como muita gente havia faltado, sobravam cadeiras no círculo da sala, mas preferi sentar-me na mesma de sempre, dois lugares à direita do escritor, que sempre renegou o título de professor.
Como era de costume, colegas diziam seus poemas, entre um gole e outro d’água. A garrafa ficava sobre a mesa e, volta e meia, alguém se servia. Eu nunca tinha bebido daquela água. Nunca. Mas, naquela noite, havia corrido tanto que cheguei à casa esbaforida, a garganta seca implorando por um gole (na verdade, vários). Precisei de 3 copos para saciar-me.
Do canto da mesa onde me servia, tinha-se uma visão panorâmica do espaço. Observei mais atentamente as pessoas, notando que havia algo diferente. Não era só a chuva, o cinza gelado que embaçava os vidros e encobria as cores da primavera. Lá fora, ouço os sinos da catedral, ressoando na alma. Ninguém se abala. Continuam a recitar. Todos ali, recitando-se uns aos outros, entre memórias e goles d´água.
 - Adélia, que felicidade revê-la! Vejo que continua a versar lindamente, como nos velhos tempos, diz um Drummond entusiasmado.
- Isso é graças ao senhor, meu padrinho de letras.
- Não me chame de senhor que o senhor não está no céu coisa nenhuma. Lá no céu ninguém tem idade, isso eu posso garantir.
- E o poeta não envelhece, não é mesmo?
- Claro, claro.  Bela Clarice. Sempre preferindo a si mesma, não é?
-É o que me basta. Vim de um mistério, parti para outro, não foi você quem o disse?
- Disse, ou melhor, escrevi. E reescrevo. Ficaremos sem saber a essência do mistério.
Avancei alguns passos a fim de compreender melhor o que diziam. As conversas fluíam animadamente.
Guimarães Rosa e Manoel de Barros ocupavam-se em cumprimentos calorosos.
- Há quem diga que nossas escritas se parecem. – observa Guimarães Rosa
-Olhe, não sou dado a elogios, mas ser comparado a um escritor de sua magnitude certamente agrada meu coração. Juro que não vinha, pois não sou homem de aparições, mas sua presença me fez reconsiderar.
- Eu digo e repito que suas palavras são feito doce de coco. Assim mesmo. Não carece tanto salamaleque, que sou bicho do mato, feito tu. - sentenciou o mineiro, com uma pontinha de irritação.
 Nem precisava dizer.
Jorge Amado se aproxima, junto de Hilda Hist, que por sua vez compartilhava versos com Drummond, Clarice e Adélia.  Apressaram-se a dar boas vindas ao recém chegado.
 - Fez boa viagem, coronel? – perguntou Hilda
- Olhe, foi tranquila. Mas não me chame assim que sou um homem de bem, vice?
-É Verdade. Coronéis não são homens de bem. Na sua terra então...
-Vixe. Melhor nem falar. E tu, me diga: recebeste o livro autografado que te mandei?
-Como não? Recebi com muito gosto. Já não me pertence mais, porque sabe como é: dia desses apareceu uma universidade muito importante interessada nos meus arquivos, anos antes de eu ir-me embora. Tive de vender. Foram os seus, os de Lygia e de tantos outros. Mas foi por uma causa muito nobre, não foi? Afinal livro a gente não guarda na estante, guarda no coração.
Sobre Zélia, Jorge lhes explicou que não viera porque já não gostava muito de viagens para tão longe, mas que mandava lembranças a todos, fazendo questão de registrar esse encontro lá de onde estava, que não podia haver lugar melhor para tirar seus retratos do que de lá de cima.
Roberto Piva, o poeta anfitrião, começava a ficar um tanto impaciente, pois o convidado principal ainda não chegara.
-Estamos todos reunidos aqui buscando uma resposta. A resposta para a maior questão, a mais intrigante já lançada na literatura brasileira, aquela que nenhum de nós conseguiu responder.
- Mal posso esperar. Mas já passa das 20h. Será que vem mesmo? – observou Drummond, apreensivo.
- Decerto que sim, garantiu-me que vinha. E não é homem de faltar com a palavra.
Foi quando, repentinamente, perceberam que havia uma estranha ali.
- Quem é aquela senhorita? Não a conheço. Creio que não tenha sido convidada. – disse Piva.
- Talvez seja uma espiã – replicou Clarice.
- Ou jornalista! – palpitou Adélia.
-E tem diferença? – questionou Piva.
. Foi a obscena e amável Senhora D quem veio em meu socorro.
- Não sejam tão implicantes! Ela é das nossas, não estão vendo? Quem mais poderia ser nesse nosso templo? Está aqui para aprender, tanto quanto nós. A diferença é que ela é jovem, e nós já somos velhos e cansados. Ah, tenho tanta inveja de ti, menina. Tantas coisas ainda a descobrir, tantos mundos a criar, tantas palavras pela frente. Nós não temos mais essa sorte, não é, senhores?
- Como é teu nome, minha jovem? – interveio o lacônico Manoel de Barros.
- Fátima – respondi, quase sem voz.
-Um nome sagrado, sabia? Junte-se a nós, por favor – pediu Drummond, com a candura de sempre.
Santo Deus! Meus delírios já estavam indo longe demais. Pensei em sair dali imediatamente e procurar um psiquiatra, como já me aconselhou, certa vez, minha irmã. Parar definitivamente com essa mania de inventar histórias e confrontar-me com a realidade. Mas, definitivamente,  minha curiosidade era maior do que minha vontade de sair correndo.
A esta altura, íamos perdendo as esperanças de que o convidado ilustre aparecesse. Nossos rostos transpareciam decepção. Clarice, Manoel e Adélia estavam decididos a partir, só não tinham ido ainda porque Rosa insistia em detê-los.
Os sinos da igreja badalam mais uma vez. Raios e trovões ressurgem, mais raivosos.  É quando a luz pisca e um rosto é iluminado por um relâmpago.
- Aonde diabos eu vim parar! Querem que o mundo caia sobre a minha cabeça? – esbravejou o homem na porta, ensopado, enquanto chacoalhava sua sombrinha e pendurava a capa.
- Imaginem que fiquei atolado no caminho. Minha charrete quase desmontou-se inteira! Pobres cavalos! Bem que haviam me dito que esse mundo estava muito diferente, mas não pensei que fosse tanto.  Afinal, onde estão os bondes, as charretes? Não há mais cavalos? Esses transportes motorizados são uma temeridade, soube que matam muita gente de atropelamento. Isso sem falar na poluição que causam.
Na tentativa de acalmá-lo, alguém lhe oferece um copo d´água.
- Vê os meus bigodes, meu filho! E meus óculos! Mal consigo enxergar! - responde, indignado, desembaçando suas lentes com um lenço e passando-o pelo rosto. Não, acho que já tomei água o bastante, obrigado.
Seguiram-se alguns momentos de catarse total, interrompidos pela sua impaciência, a fazer jus a um Dom Casmurro.
-E então, nobres colegas. Vejo que nenhum de vós é de meu tempo, mas certamente conhecem minha obra.
Claro que sim, verdadeiras obras-primas da literatura – declara Guimarães Rosa
Sem dar muita importância aos elogios,o recém-chegado pediu que fossem logo ao que interessava.
Drummond pediu a palavra:
- Bem. Nós, que estamos aqui representando a todos os escritores brasileiros e admiradores de sua obra, convivemos com um enigma criado pelo senhor, de modo que o convocamos na tentativa de esclarecer o mistério que ronda as mentes dos seus leitores há mais de um século.
O velho parece surpreso:
- Enigma? De que se trata?
- O senhor não sabe?
- Não.
- Nem desconfia?
- Ora essa, se eu soubesse já o teria dito!
 E, quem diria, é Clarice quem toma as rédeas e trata de objetivar a coisa:
 - Mas afinal, a dúvida  que todos aqui querem esclarecer é: Capitu traíra ou não Bentinho?
Com um semblante aliviado, o escritor recosta-se no assento e ri. Um riso carregado de escárnio, que ocupa todo o espaço. Gargalhadas rompem as paredes da casa; atravessam a praça, o calçadão, até confundirem-se com os sinos da igreja.
 É quando o professor, que não gosta de ser tratado como tal, me traz de volta à aula num estalar de dedos.
- Ah, desculpe! Não ouvi sua pergunta. Pode repeti-la, por favor?
- Estávamos falando da obra de Machado de Assis, Dom Casmurro. Perguntei se você acha que Capitu traiu Bentinho ou não.
Naquele momento, a única resposta que me ocorreu foi a seguinte:
- Se o próprio Machado de Assis não se preocupou em responder a essa questão, quem sou eu para arriscar?

Texto escrito na oficina de criação literária da Escola Livre de Literatura de Sto. André, sob orientação do escritor José Geraldo Neres.







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